Виктор Герингер0.0 Com um misto de humor e ironia quase machadianos, Glória narra a saga da família Costa e Oliveira e as aventuras e desventuras dos irmãos Abel, Daniel e Benjamim – um pastor, um burguês e um artista, cuja principal herança paterna foi deixá-los prontos para nunca perder uma piada. O amplo repertório de recursos estilísticos exibidos pelo autor – com algumas piscadelas cúmplices ao leitor mais erudito –, bem como o variado leque de referências mais do que literárias, aqui estão a serviço de uma prosa fluente e saborosa, narrada com o gosto de quem sabe contar uma boa história. Nessa ponte entre o século XIX e o XXI, a (meta)ficção de Victor Heringer, de Machado à internet, passando pelo café Aleph e suas figuras virtuais, vem trazer um vigoroso sopro de renovação à literatura brasileira atual. Quem ler verá.
Эвандро Аффонсо Феррейра0.0 A obsessão com a originalidade da linguagem sempre foi uma marca registrada de Evandro Affonso Ferreira, cuja literatura, iniciada em 2000 com o elogiado Grogotó, chegou a ser comparada à de Guimarães Rosa. Mas agora, aos 66 anos e em seu sexto livro, o escritor está mais reflexivo. Deixou de lado o cuidado excessivo com a forma, mas sem abrir mão da musicalidade, do cuidado com as palavras, da concisão — o que já vinha fazendo desde seu romance anterior, Minha mãe se matou sem dizer adeus, vencedor do Prêmio APCA de melhor romance de 2010 e finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti de 2011.
Neste belo e devastador O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, o autor volta a abordar temas “tenebrosos”, como solidão, loucura, decrepitude, morte. Por trás do longo título está a história de um homem culto, profundo conhecedor da obra do filósofo holandês, que, depois de ser abandonado por sua amada, perdeu a razão e transformou-se em um morador de rua. Um romance “niilista-lírico”, como define o próprio autor, em que ele abre mão do parágrafo, apresentando-o de um fôlego, valendo-se com habilidade do fluxo de consciência.
Há dez anos vagueando pelas ruas do centro de uma metrópole à procura de coincidências poéticas que lhe aplaquem tristeza, dor e solidão, um homem atormentado experimenta a proximidade dolorosa do mundo enquanto espera o retorno de sua amada — a que lhe deixou bilhete dizendo “ACABOU-SE; ADEUS”.
Seu mantra, ladainha ou refrão, repetido incansavelmente, “ELA VIRÁ— EU SEI”, impulsiona-o a seguir adiante mesmo que não haja um rumo certo. Sem poder nomeá-la ou mesmo ancorá-la em algum porto seguro nos seus pensamentos, escreve a lápis em todos os espaços vazios da cidade a letra N, inicial do nome da amada, e lança desafio aos deuses do esquecimento trazendo o tempo todo à memória os momentos de intimidade afetiva e intelectual vividos ao lado dela.
Levando consigo os Adágios de Erasmo de Rotterdam, esse mendigo erudito conhece tudo sobre vida e obra do humanista holandês — sim, o mesmo do Elogio da loucura. E narra o tempo todo sua história a um interlocutor-escritor imaginário, a quem chama de “senhor”. Ambos, narrador e interlocutor, estão debaixo de um viaduto entre tantos outros personagens-mendigos, que de miseráveis anônimos e insólitos se transformam em criaturas extraordinárias na imaginação do mendigo-poeta, como a “mulher-molusco” e o “menino borboleta”.
Даниэл Галера0.0 Neste quarto romance de Daniel Galera, um professor de educação física busca refúgio em Garopaba, um pequeno balneário de Santa Catarina, após a morte do pai. O protagonista (cujo nome não conhecemos) se afasta da relação conturbada com os outros membros da família e mergulha em um isolamento geográfico e psicológico. Ao mesmo tempo, ele empreende a busca pela verdade no caso da morte do avô, o misterioso Gaudério, que teria sido assassinado décadas antes na mesma Garopaba, na época apenas uma vila de pescadores.
Sempre acompanhado por Beta, cadela do falecido pai, o professor esquadrinha as lacunas do pouco que lhe é revelado, a contragosto, pelos moradores mais antigos da cidade. Portador de uma condição neurológica congênita que o obriga a interagir com as outras pessoas de modo peculiar, o professor estabelece relações com alguns moradores: uma garçonete e seu filho pequeno, os alunos da natação, um budista histriônico, a secretária de uma agência turística de passeios. Aos poucos, ele vai reunindo as peças que talvez lhe permitam entender melhor a própria história.
É também com lacunas e peças aparentemente díspares que Galera constrói sua narrativa. Dotado de um senso impecável de ritmo, ele alterna descrições ricas em sutileza e detalhamento com diálogos ágeis e de rara verossimilhança, que dão vida a um elenco de personagens inesquecíveis.
Barba ensopada de sangue resgata e leva às últimas consequências temas e conflitos das obras anteriores do autor, tais como: a construção da identidade e, nesse processo, as dificuldades que enfrentamos para entender e reconhecer os outros; a necessidade inconfessa de uma reparação talvez inviável; a busca pela unidade entre mente e corpo; o consolo afetivo que o contato com a natureza e os animais é capaz de nos proporcionar; os diversos tipos de violência que podem irromper em meio a uma existência domesticada.
Луиза Гейслер0.0 A obra Quiçá é protagonizada pelo jovem Arthur, parente do interior, anatematizado pela família, e Clarissa, a solitária prima de 11 anos, boa aluna e boa filha. O primo passa a ser, com o decorrer das semanas, o único olhar a definir e entender Clarissa, ante a discreta desconfiança dos pais da menina, ausentes do seu dia a dia. As cenas fragmentárias do romance revelam vidas descosidas umas das outras: nas relações a dois, nas relações familiares e nas amizades, tudo soa precário. Mesmo a ligação que une Arthur e Clarissa não se dá por inteiro, e alguns segredos desconfortáveis assomam como breves fantasmas ao longo do texto. Uma reunião de Natal, a que toda a família comparece sem vontade, apenas sublinha o esgarçamento do tecido que uma vez os uniu.
O romance mostra inequívocas qualidades literárias, e com o seu tom impressionista, atento aos detalhes sutis do contato humano, consegue prender o interesse do leitor por meio de bom domínio técnico. O texto tem um ouvido especial para a linguagem coloquial contemporânea da nossa classe média urbana, reelaborando-a estilisticamente por recursos sintáticos (e às vezes gráficos), sem perder, entretanto, o eixo narrativo que lhe dá substância.
Do ponto de vista estrutural, Quiçá se realiza em três tempos, uma proeza para qualquer escritor: a) um ano letivo, no qual Arthur passa na casa dos tios, após ter sido internado por tentativa de suicídio; b) um dia, um almoço de Natal que reúne toda a família; c) uma vida, nas pequenas revelações diárias.
Neste conjunto cênico que se entrelaça, transparece uma descrença corrosiva, mas sem ênfase, que parece esvaziar a possibilidade de uma vida libertadora; o possível são apenas lampejos erráticos de pequenos roteiros sem transcendência.
Pelo bom equilíbrio entre forma e intenção, Quiçá é um livro que envolve e faz pensar.